O horror brasileiro vive uma excelente fase nos cinemas, graças a cineastas como Gabriela Amaral e Dennison Ramalho , mas o mesmo não pod...
O horror brasileiro vive uma excelente fase nos cinemas, graças a cineastas como Gabriela Amaral e Dennison Ramalho, mas o mesmo não pode ser dito da televisão. A produção nacional de gênero ainda é muito pequena na telinha, que aposta em séries policiais e dramas. Grandes investidas, como Supermax e O Escolhido, vieram e foram sem muito impacto. Nesse ambiente escasso, Desalma pode se tornar o primeiro grande seriado brasileiro de horror.
A criação da escritora Ana Paula Maia (Enterre Seus Mortos) é ambiciosa na sua exploração de um lado oculto do Brasil. A trama acompanha a isolada cidade de Brígida, uma comunidade de descendentes ucranianos escondida nas florestas do Sul do país. Quando os habitantes se preparam para celebrar a tradicional noite folclórica de Ivanà-Kupala, uma presença sobrenatural passa a assombrar o local, trazendo à tona os traumas de um assassinato ocorrido 30 anos antes.
Morta, enrolada em plástico
É visível que Maia quis trazer todos os sabores de uma produção gringa, seja na narrativa ou nos cenários, mas o que surpreende e dá personalidade a Desalma é justamente o quão profundamente brasileira é essa história. O Brasil, em sua grande mistura de povos, abriga descendentes europeus que trouxeram seus costumes e tradições para cá; num contexto de orgulho cívico e inadequação, é possível entender como isso dá margem ao isolamento dessas comunidades.
A série capta bem isso, e constrói toda a sua atmosfera em cima da sensação de deslocamento - seja da estética, dos sotaques, dos nomes, ou mesmo da mitologia pagã. O que torna a produção tão rica é o choque entre essas culturas, e o que amplia o horror é o desconforto que essa combinação inusitada causa nos espectadores. Por mais que o programa faça constante homenagem a clássicos como O Iluminado (1980) e A Profecia (1966), é muito mais próximo da estranheza de Twin Peaks, em que é possível sentir que há algo errado apenas pela forma como as pessoas falam e agem - além de, é claro, o enorme paralelo da morte de uma jovem que muda para sempre as pessoas de uma pequena cidade.
Halyna Lachovicz (Anna Melo) - a “Laura Palmer” de Desalma - ganha bastante desenvolvimento através de flashbacks que retomam ao ano de sua morte, mas é Haia (Cássia Kiss) que rouba a cena. Apegada aos hábitos de sua origem ucraniana e interessada pelo místico, a personagem é tratada como a bruxa de Brígida. Cássia Kiss, veterana do audiovisual brasileiro, entrega com perfeição todo o ressentimento de uma mulher sem pátria, cuja única comunidade só lhe trouxe luto, dor e amargura. Seja proferindo maldições eslávicas, ou praticando rituais na mata escura, Haia rouba toda cena que aparece.
Kiss não fica isolada quando se trata de um ótimo elenco. Quem está altura da atriz é Cláudia Abreu, com quem já contracenou na novela Barriga de Aluguel (1990). Enquanto o caminho das duas não se cruza com tanta frequência, ambas representam os dois arcos mais humanos de Desalma: o luto da mãe que teve a filha tirada de suas mãos, e a melhor amiga da vítima cuja vida vira do avesso ao perceber que nem sempre o que está morto fica enterrado. Se Kiss demonstra ressentimento e dor internalizada, Abreu impressiona pelo desespero de descobrir verdades desconfortáveis, e de ver seu filho, Anatoli (João Pedro Azevedo), sendo atormentado por uma entidade desconhecida.
Está Acontecendo Novamente
A série sabe como prender com um lento e agonizante ritmo, que dá mais peso aos seus vários mistérios. Desalma é denso em suspense ao demonstrar a assombração de Brígida pelo passado através de diversas perspectivas e núcleos de personagens. As reviravoltas são impactantes, ainda que ocasionalmente essa força seja diluída por diálogos explicativos e meio engessados. Isso é ainda mais presente nas várias cenas de flashback, com um grupo mais jovem de atores que não trabalha tão bem o texto difícil e expositivo quanto os mais velhos.
O grande destaque, porém, fica para o visual de Desalma. Tudo na produção é de altíssimo nível, e não deixa nada a desejar para obras gringas da HBO ou Netflix. Os episódios e atores são bem dirigidos, e a direção artística é facilmente uma das melhores da TV brasileira. Seja na ameaça da mata catarinense, nas casas rústicas de Brígida ou os figurinos excêntricos dos habitantes, há frieza macabra sem abrir mão de textura e cores vibrantes. Na tentativa de emular o estilo de horror pastoral europeu, a série poderia ter caído na armadilha de só fazer tudo seco, cinza e sem graça. Felizmente a equipe passou bem longe disso e entregou algo marcante.
Desalma merece um espaço entre os destaques do ano e da produção nacional de gênero. O seriado entende o desafio de criar folk horror no Brasil, sem imitar o que vem de fora, mas sim - no melhor estilo da Tropicália - importando os melhores elementos e os combinando com influências locais para criar algo autêntico e único. Com uma segunda temporada já garantida, e alguns ganchos de peso estabelecidos, o terror em Brígida tem tudo para ficar cada vez mais estranho, profano e memorável.
Fonte Omelete