“Quando se trata de lei, de políticas públicas, do corpo feminino, estamos falando do 'ser mulher”, desabafa a cantora trans Majur. Or...
“Quando se trata de lei, de políticas públicas, do corpo feminino, estamos falando do 'ser mulher”, desabafa a cantora trans Majur.
Organizações não-governamentais como a #VoteLGBT tentam fortalecer candidaturas e propostas da comunidade nas eleições deste anoGui Mohallem/#VoteLGBT |
O país que mais mata pessoas trans agora vai tentar – eu disse tentar – protegê-las. A sexta turma do Superior Tribunal de Justiça reconheceu que a Lei Maria da Penha, que protege mulheres vítimas de violência doméstica, pode ser aplicada para mulheres trans.
Sem dúvida é uma grande vitória, e precisamos comemorá-la. Mas, assim que li essa notícia, a pergunta que me veio à cabeça foi: o que muda, de fato, na vida dessas mulheres quando pedirem socorro?
Eu, particularmente, como um homem cis e gay, nas vezes em que precisei entrar em uma delegacia, entrei com receio de como seria tratado.
A Organização Mundial da Saúde tirou a homossexualidade da lista de doenças em 1990. Já o Brasil tirou em 1985, cinco anos antes, mas a discriminação continua por muito tempo, né? Continua até hoje. Então é uma contradição que o Brasil tem, porque tenta passar a imagem de um país acolhedor, mas, na prática, é um país extremamente preconceituoso e discriminatório
A advogada Amanda Souto Baliza, 31 anos / Acervo pessoal |
Essas são as palavras da advogada e conselheira da OAB-Goiás, Amanda Souto Baliza, 31 anos. Ele é a primeira mulher trans a ocupar uma comissão no conselho federal da Ordem Advogados do Brasil e também foi a primeira mulher trans a pedir a retificação do registro profissional após a alteração do nome social na seccional goiana.
Amanda é uma dessas mulheres fortes, que com muito suor e estudo conseguiu alcançar uma posição social que dá mais visibilidade às pessoas trans. “Em 2020 a gente teve uma delegada lá na delegacia da mulher no Mato Grosso que se recusava a atender mulheres trans, e ano passado nós tivemos uma mulher trans que era agredida pelo pai lá em São Paulo. Em primeiro grau, o juiz negou as medidas protetivas e o tribunal também confirmou essa negativa. E aí o Ministério Público recorreu para o STJ”, explica a advogada.
E foi justamente nesse caso que, por unanimidade, os ministros da sexta turma entenderam que o artigo 5º da Lei Maria da Penha caracteriza a violência doméstica e familiar contra a mulher como qualquer ação ou omissão baseada no gênero, mas que isso não envolve aspectos biológicos.
“Eu acho que é uma decisão bem importante, ímpar, e ela vem com uma possibilidade. Elas devem ser protegidas, né? Porque muitas vezes o tribunal determina que são protegidas, mas aí ela vai para alçada da justiça comum e acaba tendo que convencer juízes e o escrivão ainda de que aquele caso de fato foi uma violação que se enquadra dentro dessa lei”, diz Keila Simpson, 56 anos. Keila, uma mulher trans, é ativista dos direitos LGBTQIA+ desde os anos 1990. Atualmente, ela é presidente da ANTRA, Associação Nacional de Travestis e Transexuais, principal rede que protege e atua na defesa dos direitos da população transexual no Brasil.
A gente está celebrando bastante a decisão, ainda mais que ela traz em seu bojo um elemento que a gente sempre tem debatido bastante, que é a questão dessa identificação como mulher não se remeter ao genital, ao biológico. Ela se remete à identificação pessoal de cada uma. Esse é um debate que a gente tem feito bastante, porque as pessoas, ainda hoje, quando querem nos discriminar, aproveitam muito esse viés biológico
E ela sabe como esse preconceito não só dói, mas mata.
Segundo a edição de 2022 do dossiê de assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2021, tivemos no ano passado pelo menos 140 assassinatos de pessoas trans. Destes, 135 das vítimas eram mulheres trans e travestis. E 15% desses homicídios aconteceram dentro do ambiente doméstico.
O relatório não traz somente números que assustam, mas também nomes, sobrenomes e idades que chocam. Pelo menos para mim. Keron Ravach, de apenas 13 anos, foi assassinada a pauladas no Ceará e se tornou a vítima mais jovem conhecida nesses cinco anos de pesquisa.
Ativista de direitos LGBTQIA+ desde os anos 1990, Keila Simpson, 56 anos, é presidente da ANTRA / Acervo pessoal |
É a pessoa que está sofrendo a violência quem vai determinar se ela sofreu por essa razão. Então, a gente passa de comemorar para começar a aplicar lei, porque a população está desde muito tempo naturalizando essa violência, né? Às vezes sofre uma violência e nem se percebe que é uma violência, porque tá muito naturalizado ser expulsa de casa quando ainda muito jovem e ter que sobreviver com as suas próprias condições, quando não existe nenhuma. E aí, com essa legislação, com essa decisão judicial que ainda não é uma lei – mas que se equipara a uma e vai ser respeitada como lei – a gente tende a concordar, estudar e acreditar que isso vai diminuir muitas das violações que aconteciam até aqui
MULHER, em caixa alta. Porque só educando e normalizando vamos conseguir avançar.
“Se estamos falando sobre leis para mulheres trans em 2022, é porque a gente está extremamente atrasado. Então acredite: se conseguimos chegar nesse primeiro passo, que sim, acredito que é o primeiro passo, tem muita coisa ainda para acontecer. A luta continua e talvez não seja nem na minha geração”. Quem tem voz de fala é a cantora baiana Majur, 26 anos. Com mais de 350 mil seguidores nas redes sociais, Majur, uma mulher trans, conquistou com a ajuda da música um papel imprescindível nessa batalha diária contra o preconceito.
“A gente está num processo de educação da sociedade através das redes sociais, e inclusive foi esse movimento das redes que impulsionou toda a visibilidade da mulher trans na sociedade. Não só da mulher, mas de pessoas trans em geral, porque começaram a discutir todas as questões de gênero a partir dos debates nas redes sociais”, diz a cantora.
As pessoas precisam saber o que significa ‘gênero’ para depois a gente ter educação nas instituições. Acho que isso vai demorar um pouco, talvez ainda ocorram muitos processos de mulheres que vão se sentir mal de estar nesses espaços. Inclusive, a gente já se sente agora. Não é porque a lei começou hoje que já mudou
Majur, cantora e compositora
A cantora Majur, 26 anos, na turnê do album Ojunifé / Jorge Porci/redes sociais |
O espaço ao qual a cantora se refere são as delegacias que devem receber as mulheres que sofreram algum tipo de abuso. Em São Paulo, a Secretaria de Segurança Pública lançou, em março de 2022, uma cartilha com normas de atendimento a travestis e transexuais nas delegacias do Estado. Uma das portarias é a de respeito ao nome social das pessoas em todos os registros.
“Quando as pessoas (trans) chegam à delegacia comum, muitas vezes elas sofrem aquela mesma discriminação que sofreram de alguma outra pessoa. Então quando você tem uma equipe capacitada para aquele tipo de atendimento, é muito importante. Só que aí a gente precisa ter pessoas que são capacitadas e que também têm uma sensibilidade para a pauta, né? Porque não adianta nada ter capacitação, mas seguir com uma mente muito fechada ou com um conceito mais machista de mundo. Então pode ser que aquela pessoa faça com que as vítimas de crimes de violência doméstica familiar acabem sendo revitimizadas”, comenta a doutora Amanda Baliza.
“A gente vai sempre reforçar que é uma decisão judicial e que ela tem que ser cumprida independentemente do lugar que seja. Mas isso não é algo impositivo. É algo que a gente vai ter que fazer de uma forma muito didática, educando as pessoas para nossas decisões”, reforça Keila Simpson.
“Todas as pessoas precisam se sentir pertencentes. E, sinceramente, nós não nos sentimos pertencentes há muito tempo, porque sempre fomos jogadas à margem da sociedade, então esse momento faz jus ao que é real, nós somos reais e existentes. Quando se trata de lei, de políticas públicas, do corpo feminino, estamos falando do ‘ser mulher’”, esclarece a cantora Majur.
MULHER, com o mesmo significado e principalmente direito para todas elas. Talvez essa tenha sido uma das maiores vitórias dessa decisão judicial.
E quem sabe um dia não precisemos mais colocar a palavra trans depois de nos referirmos a elas.
Apenas mulheres, como a cantora Majur, a advogada Amanda, a ativista Keila, a dona de casa Maria, a empresária Fernanda…
Fonte CNN Brasil